Luiz Giaconi é empresário, escritor e jornalista formado pela faculdade Cásper Líbero; Pós-Graduado em Política e Relações Internacionais pela FESP-SP.
Pretendemos recontar ações de desarmamento através da história nessa série de textos. Os motivos que levaram determinados povos a fazer essa escolha e mostrar suas consequências, muitas vezes inesperadas e desastrosas. Desarmamento não é uma iniciativa nova, e os casos do passado servem, muitas vezes, como lição para o presente e para o futuro.
O caso das armas na Alemanha nazista é extremamente interessante, e, por muitas vezes, foi interpretado e utilizado de maneira equivocada. Adolf Hitler é frequentemente colocado na galeria dos tiranos genocidas que confiscaram e proibiram que seu povo tivesse acesso à armas, como Stalin, Lênin, Fidel Castro, Mao Tse-tung, a família Kim da Coréia do Norte e vários outros. Mas isso não é completamente verdade. O caso nazista alemão é um pouco mais complexo do que os similares comunistas. Em parte devido à ideologia.
Muitas das leis alemãs sobre controle de armas de fogo foram herdadas pelos nazistas, e não impostas por eles. Leis essas, que criadas numa democracia, tinham, em teoria, as melhores intenções. Mas acabaram servindo para facilitar o serviço de um futuro regime autoritário e homicida. E contribuíram para facilitar uma das maiores catástrofes da história da humanidade: o holocausto.
As boas intenções de uma democracia…
O cenário alemão no período entre guerras era bem complexo. Derrotados na Primeira Guerra Mundial, e humilhados pelas duras cláusulas do Tratado de Versalhes, a situação política, econômica e social do país se deteriorara gravemente. Além de perder parte de seu território, os alemães ainda tinham que pagar pesadas reparações financeiras aos vencedores do conflito, especialmente Inglaterra, França e Estados Unidos, e de praticamente ser a única nação responsabilizada pelo conflito. Parte da população via a rendição de 1918 como uma traição das classes políticas ao país, já que quando o armistício foi pedido, nenhum soldado estrangeiro havia colocado os pés em território alemão. Sem contar que no front oriental, os exércitos do kaiser Guilherme II haviam derrotado o então Império Russo, impondo o Tratado de Brest-Litovsk aos comunistas russos comandados por Lênin.
A desconfiança no sistema democrático, aliado ao caos econômico provocado por uma das maiores hiperinflações da história, fermentaram movimentos extremistas revolucionários, como comunistas e nazistas, que pretendiam acabar com a então ordem democrática e liberal vigente, e implementar regimes autoritários. Foram várias as tentativas de tomada de poder por ambas as partes. E muitos confrontos armados entre os seguidores das duas tendências.
Para tentar diminuir o clima belicoso, em 1919, o governo da então República de Weimar aprovou a primeira lei nacional para o controle de armas de fogo, ordenando a entrega de todas as armas ao governo. Quem não obedecesse estava sujeito a uma pena de até cinco anos de prisão e a uma multa de cem mil marcos. Em 1928, a coalizão de sociais democratas, centristas e conservadores, que ganhou as eleições do mesmo ano, estabeleceu uma lei mais completa sobre o tema.
A nova legislação acabava com a proibição total da lei anterior, mas requeria permissão tanto para comprar, quanto para portar uma arma de fogo (no caso, pistolas e revólveres de baixo calibre). Lojas de armas deveriam manter registros dos compradores, além de obter licenças para funcionar. Armas mais antigas, que não possuíssem numeração de série deveriam ser devolvidas aos fabricantes para que pudessem ser numeradas, e então devolvidas aos proprietários. A permissão para a compra de uma arma só era concedida a pessoas de “reputação ilibada”. E o direito ao porte era apenas concedido em casos raros, quando o comprador conseguia comprovar necessidade da mesma. Mais ou menos como o que acontece no Brasil dos dias de hoje. As regras eram tão duras que menos de 0,5% dos compradores conseguiam o direito ao porte de armas.
Já em 1931, com o agravamento dos confrontos entre nazistas e comunistas, e o acirramento das animosidades entre ambos, o governo endureceu ainda mais a lei. O porte de facas e armas brancas também foi proibido, sendo permitido apenas para quem tivesse porte de arma de fogo segundo a lei de 1928. Agora além do porte, o ato de comprar de uma arma de fogo estava sujeito ao comprador ter que provar “verdadeira necessidade em possuir uma arma”. Qualquer semelhança com o nosso caso é mera coincidência.
… podem resultar em mais poder para uma ditadura.
No ano de 1933, quando os nazistas assumiram o poder, não se incomodaram em mexer na lei contra armas, já que ela era suficientemente dura para aquele primeiro momento. A única emenda na lei antiga foi a proibição da importação de revólveres e pistolas. Partidários do antigo regime democrático, especialmente os sociais democratas e conservadores que não comungavam com as intenções dos nazistas logo foram colocados na lista dos subversivos, ao lado dos militantes comunistas. A maioria teve as casas e propriedades revistadas e as armas confiscadas. Os mais incômodos sofriam perseguição política, e, nos casos mais extremos, eram mandados a Dachau, o primeiro de uma série de campos de confinamento, trabalho e posteriormente extermínio.
Com boa parte dos inimigos internos sob controle, em 1938, a “Lei Nazista sobre as Armas” (Nazi Weapon Law), flexibilizava em alguns pontos a antiga lei alemã sobre o tema. Apenas a compra de revólveres e pistolas requeria permissão, enquanto rifles de caça, espingardas e munições não precisavam mais de autorização policial. A idade mínima permitida para a compra de armas caiu: de 21 para 18 anos. A nova lei também facilitou a posse de armas. Funcionários de ferrovias, caçadores amadores e profissionais, praticantes de tiro esportivo, trabalhadores do ramo de segurança particular, empresários, comerciantes e membros do partido Nazista agora tinham mais facilidades para comprar e portar armas de fogo. O período do porte de armas também foi estendido. Passou a durar três anos, ao invés de apenas um.
Mas o “pacote de bondades” dos nazistas não valia para uma parcela importante da sociedade: os judeus. Ao mesmo tempo em que abrandavam as leis para os alemães “puros”, os nazistas lançaram também a “Regulação Contra a Posse de Armas por Judeus” (Regulations againts Jews’ possession of weapons). Assinada no dia 11 de novembro de 1938, essa nova lei previa que judeus estavam proibidos de possuir, portar ou comprar armas de fogo, munições e armas brancas; armas encontradas com judeus seriam confiscadas e eles não seriam ressarcidos; quem violasse a lei estaria sujeito à multa e até cinco anos de prisão.
A data da entrada em vigor da nova legislação não poderia ter sido mais propícia para a tragédia. Entre os dias 9 e 10 de novembro de 1938, houve na Alemanha o que ficou conhecido como Noite dos Cristais (Kristallnacht), devido às vidraças das lojas, oficinas, escolas, casas, sinagogas e empresas de propriedade de judeus, que foram quebradas e destruídas, numa série de ataques coordenados entre as milícias nazistas (SA) e populares alemães contra judeus. Cerca de 90 judeus foram mortos nos ataques e perto de 30 mil foram presos e enviados para campos de concentração. O registro de armas, de 1928 só facilitou o trabalho das tropas da SS. Com os nomes dos judeus que eram proprietários de armas de fogo em mãos, bastava aparecer na casa do indivíduo e requisitar a entrega da arma. Em alguns casos, não só a arma era levada pelos nazistas. O proprietário ia junto. Para nunca mais ser encontrado.
Segundo o JPFO (Jews for the Preservation of Firearms Ownership), organização judaica defensora da posse de armas, a medida contra a compra e posse de armas por judeus foi uma das primeiras e mais importantes iniciativas dos nazistas com relação à “questão judaica”. Iniciativas essas que levariam ao posterior holocausto de mais de 6 milhões de judeus europeus nos anos seguintes.
A diferença entre nazistas e comunistas no tema armas
Com o inicio da Segunda Guerra e as subsequentes conquistas e a expansão do território alemão, a lei sobre armas foi colocada em prática nos territórios ocupados. Franceses, belgas, holandeses, tchecos, noruegueses, dinamarqueses, gregos, iugoslavos e poloneses tiveram suas armas e seu direito ao porte confiscados, ao contrário do alemão comum. O historiador Bernard Harcourt aponta essa característica como marcante na diferença entre nazistas e comunistas.
Os comunistas viam todos como inimigos em potencial, numa eterna luta de classes misturada à paranoia revolucionária e inimigos imaginários até debaixo da cama. Portanto, o desarmamento deveria ser amplo, geral e irrestrito, como demonstrado nos textos anteriores sobre o tema, em que tratamos da situação da antiga União Soviética, da China, do leste europeu e de Cuba. Já os nazistas viam nos judeus a ameaça a ser combatida e o mal a ser extirpado da face da terra, enquanto os povos conquistados eram vistos com desconfiança. Por isso, o cidadão alemão comum tinha razoável liberdade para compra e posse de armas de fogo, comparando-se com outros povos que viveram sobre um regime autoritário.
No final da guerra, com a situação se deteriorando rapidamente, após as derrotas catastróficas em Stalingrado, Kursk e na grande ofensiva soviética de 1944, civis alemães foram estimulados a pegar em armas e combater, especialmente os invasores russos na batalha de Berlim. Organizadas em outubro de 1944, e tendo o então ministro da propaganda e ardoroso defensor da “Guerra Total”, Joseph Goebbels, como seu comandante, as Volksturms (milícias populares), deveriam ajudar o que restava do exército alemão a conter o avanço vermelho. Armados com o que tivessem, desde armas civis até o que sobrara do armamento militar, essas tropas populares não foram páreo para as tropas soviéticas, calejadas após quatro anos de conflitos e em número muito maior. Tanto Goebbels quanto Hitler se suicidaram a tiros, no bunker de Berlim, entre 30 de abril e 1° de maio de 1945.
Situação atual
Após 1945, na antiga Alemanha Ocidental, as leis restringindo armas de fogo eram bastante rígidas. Num primeiro momento, nem policiais eram autorizados a andar armados. A venda de armas aos civis só foi liberada após 1956, com regras bastante semelhantes à antiga lei de 1928. Nos anos 70, com a ameaça e os ataques terroristas praticados pelos comunistas do Grupo Baader-Meinhof, a lei foi revista e ampliada ainda mais.
Em 2002, após uma série de ataques com armas de fogo a escolas, avaliações psicológicas tornaram-se obrigatórias para quem pretende possuir uma arma de fogo, além de aumentar para 25 anos a idade mínima para a compra de uma arma. Emendas em 2008 e 2009 proibiram armas de pressão e tasers, além de estabelecer vistorias frequentes nas residências dos proprietários de armas de fogo. Militares e policiais tem o direito de andar armados, mas a liberação de armas e munição é severamente controlada em ambos os casos.
Para os civis, existe um sistema de licenças, que varia conforme a necessidade, o interesse e a capacidade do individuo, baseado em diversas cores. Basicamente aqueles que estão no nível verde podem ter até duas armas, sendo o mais fácil de conseguir. No nível amarelo, até cinco armas de fogo. O nível vermelho é para colecionadores registrados e aprovados. Quem já foi condenado por algum crime, possui histórico de doenças mentais, vício em drogas, álcool ou histórico de comportamento agressivo é automaticamente impedido de obter uma licença para comprar ou portar armas de fogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário