Nos últimos dois anos, exemplos de lavagem de dinheiro à brasileira
Rede que legaliza dinheiro ilícito se expande, e 43 mil passaram a ser investigados
RIO - Há três décadas Desiré Delano Bouterse é o líder político e militar mais poderoso do Suriname, antiga colônia holandesa na fronteira com o Pará, distante 1.500 quilômetros de Belém. Ex-chefe de uma ditadura que nos anos 80 proclamou no país uma "República Socialista", retornou ao poder na eleição do ano passado. Ele tem mais 42 meses de mandato pela frente, até 13 de agosto de 2015. Então, Bouterse vai se tornar um narcotraficante de 70 anos com prisão decretada no Brasil e em mais meia centena de países, a pedido da Holanda, onde está condenado a 16 anos de prisão por tráfico de cocaína.
"A imunidade de um chefe de Estado começa no momento de sua posse e termina no momento em que deixe a função", lembra a embaixada dos Países Baixos, em nota dirigida ao GLOBO para explicar a posição do governo holandês sobre o caso do presidente do Suriname. "Isso significa", continua, "que Bouterse, depois do mandato, poderá ser penalizado por qualquer ato que cometeu antes de ser presidente, pelos atos privados cometidos durante a sua presidência e pelos atos que venha a perpetrar depois da sua presidência."
Nos anos 80, ele foi um dos pioneiros na organização de rotas de tráfico de cocaína colombiana do Brasil para a Europa e os Estados Unidos, via Suriname. Tinha um sócio brasileiro, o ex-garimpeiro Leonardo Dias Mendonça, preso em Goiás. Mendonça e Bouterse fizeram fortuna numa lucrativa frente de negócios com as Farc, a narcoguerrilha da Colômbia: vendiam armamento e recebiam em cocaína. Registros financeiros indicam que Mendonça somou um patrimônio de US$ 70 milhões. Financiou o início de carreira de Luiz Fernando da Costa, o Beira-Mar — preso em Mossoró (RN). E patrocinou uma rede de apoio político, na qual se destacou o ex-deputado federal Pinheiro Landim (PMDB-CE), recentemente homenageado na Assembleia do Ceará.
Bouterse, Mendonça e Beira-Mar são personagens de uma obscura rede financeira em expansão no Brasil, especializada em legalizar dinheiro obtido com atividades ilícitas (do narcotráfico à corrupção). De terno e gravata no palácio presidencial em Paramaribo ou em uniformes das penitenciárias de Goiânia e Mossoró, eles movem seus lucros para a legalidade no país que se tornou o principal centro de lavagem financeira da América do Sul. A velocidade dessa transformação coincidiu com o ritmo de crescimento da economia nacional e da multiplicação das rotas de trânsito de droga do Brasil para EUA, Europa e Ásia (via África) na última década.
Um exemplo de como são feitas as operações: agentes financeiros usaram pelo menos 70 empresas e 112 pessoas para legalizar uma fatia de R$ 62 milhões dos ganhos de Beira-Mar no tráfico durante os últimos 19 meses (ver gráfico). Não importa a origem do dinheiro, os padrões de lavagem quase sempre são os mesmos — segundo o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda.
Governo admite a impunidade
Os dados do governo e do Judiciário sobre negócios feitos na fronteira das finanças ilegais são precários e de qualidade discutível, mas revelam um significativo crescimento no Brasil: 43,2 mil empresas e pessoas físicas passaram a ser investigadas por suspeita de lavagem de dinheiro nos últimos 23 meses — mil a mais que o total de investigados nos quatro anos anteriores. Somente no ano passado, 30,5 mil se tornaram alvo dos "relatórios" que o Coaf envia às polícias, à Receita Federal e ao Judiciário. Foi o triplo do registrado em 2009.
Este mês começou com 51 empresas e cidadãos brasileiros sob investigação nos EUA. O Departamento do Tesouro situa o Brasil em quinto lugar na classificação de países com transferências de valores sob suspeita detectadas no mercado financeiro americano. Os dados sobre o período de novembro de 2009 a junho deste ano mostram a Venezuela isolada na liderança (39% dos inquéritos abertos), seguida por Argentina, México e Emirados Árabes. O Brasil se igualou a paraísos fiscais como Panamá e superou Uruguai, Hong Kong, Afeganistão e Ilhas Virgens Britânicas.
Na média, quatro em cada dez empresas ou pessoas físicas que passam à investigação no Brasil têm sido denunciadas por agências do exterior. Isso permitiu ao governo brasileiro êxito no bloqueio judicial de R$ 792 milhões em contas nos EUA, em Portugal, no Uruguai e na Suíça.
Além desse dinheiro, o país mantém um estoque de R$ 1,1 bilhão bloqueado por ordem judicial em contas-correntes, fundos de investimentos e de previdência privada de propriedade de empresas e de brasileiros investigados por crimes de lavagem.
No Rio, está interditado R$ 1 bilhão — 12 vezes mais que a soma dos bloqueios feitos em São Paulo (R$ 23 milhões), Ceará (R$ 18 milhões), Bahia (R$ 13 milhões), Minas Gerais (R$ 12 milhões), Pernambuco (R$ 10 milhões), Paraná (R$ 7 milhões) e Roraima (R$ 1,4 milhão).
Os tribunais receberam 3,5 mil novos inquéritos e ações penais por lavagem, no ano passado, mas os resultados são rarefeitos, segundo uma avaliação feita em abril pelo governo brasileiro em conjunto com a agência intergovernamental especializada (Gafi/Fatf): "São muito poucas as condenações", concluem, citando o risco que o país passou a representar e o tamanho do setor financeiro.
Márcia Cunha, juíza especializada em casos empresariais, no Rio, acha que a eficiência só vai aumentar com a repressão aos delitos financeiros: — Onde dói mesmo é no bolso, por isso precisamos ir atrás do dinheiro.
Há evidências de que máfias brasileiras passaram a financiar plantios, refino e logística de transporte do narcotráfico no Peru, na Bolívia e no Paraguai, acrescenta o sociólogo peruano Jaime Antezana:
— Iquitos, na fronteira do Peru com o Brasil, se tornou um paraíso para reinversão dos lucros.
Outra área onde os negócios florescem é o Paraguai. Desde 2009, a agência antidrogas americana (DEA) vigia operações na Tríplice Fronteira feitas pelo Banco Amambay com empresas de Horacio Cartes. Cartes é líder do Partido Colorado e pré-candidato à presidência do Paraguai nas eleições de 2013. Os relatórios da DEA informam que Cartes comanda uma grande "lavanderia" para máfias de vários países, principalmente o Brasil.
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